terça-feira, 26 de junho de 2012

Proseando sobre... E aí... Comeu?


Fernando (Bruno Mazzeo), Honório (Marcos Palmeira) e Fonsinho (Emilio Orciollo Netto) estão constantemente juntos fazendo um Happy Hour no Bar Harmonia, sempre servidos por um garçom comparado fisicamente ao músico Seu Jorge, e este é vivido pelo próprio. Lá eles falam de tudo, sobretudo de mulheres, suas experiências e fracassos, compartilhando aventuras sexuais na noite carioca e buscando um sentido nessas relações. Essas conversas de clima descontraído são regadas a álcool e palavrões, viabilizando as personalidades do trio ciente do texto, numa intimidade que consegue, graças ao bom roteiro, empatia com o público, não de modo geral.  Mas tem força para alcançar seu alvo, sendo cômico e deliberadamente infame em suas reflexões tendenciosas e comuns, direcionando a um finalmente previsível e surpreendentemente significativo. 

Descarado como esperado, “E aí... Comeu?”, baseado em peça de Marcelo Rubens Paiva – há pouco o escritor já teve uma obra adaptada para o cinema, o interessante “Malu de Bicicleta” –, é um estupor dos comportamentos masculinos, com suas neuroses narradas à risca por um trio ferido pela vida igual qualquer um que não se encontra suficientemente contente em suas atuais situações. Aí reside a empatia necessária que só poderia funcionar com caras entregues a esse universo com naturalidade e projeção pessoal. Mazzeo, por exemplo, contou que se identificava com a situação de Fernando. Milhões de outros diriam o mesmo. Emilio Orciollo Netto é quem fica com o papel mais vazio da trama, ao mesmo tempo que é o mais farto em relação a mulheres. Já Marcos Palmeira com seu Honório é o mais fértil personagem. Pai de família, convive com a dúvida quanto as saídas noturnas de sua esposa, Leila (Dira Paes). 

Partindo da ótica dos experimentos amorosos por parte de um trio que vive amarguras com ternura justamente como defesa para esconder suas vulnerabilidades, o filme dirigido por Felipe Joffily de “Muita Calma Nessa Hora” se entrega ao escracho, o que sugere divisão de opiniões e de público. A presença de Mazzeo colabora para a divulgação da comédia, uma vez já ser figura carimbada do humor nacional, embora tenha se ligado a uma das produções mais estúpidas do nosso cinema recente, a bobédia "Cilada.com". Unido a ele, Marcos Palmeira e Orciollo Netto, nomes famosos da teledramaturgia, se adéquam aos papéis com vivacidade e carga dramática necessária, experiência de anos que colabora para o desenvolvimento do tema e dos personagens. 

Felipe Joffily não tem lá muita experiência por trás das câmeras, não se atreve a transformar o filme em um autêntico filme, soando mais como uma esquete demasiada prolongada mesclando boas e péssimas piadas. Ao menos acerta na espontaneidade por parte de seus atores e não economiza nos takes longos, trabalhando bem a Mise-en-scène, proporcionando liberdade para o elenco. Uma cena envolvendo Honório e Leila quase em seu ato final se destaca entre as outras. A mesa de bar como cerne de distintas tramas abriga relatos questionando a mulher de maneira popularmente machista. Aí entram as reproduções humanas daquelas conversas: Vitória (Tainá Müller) que repentinamente terminou o namoro com Fernando; Gabi (Laura Neiva, a garota descoberta na internet para protagonizar o ótimo “À Deriva”) encarnando uma adolescente pulsante; e Alana (Juliana Schalch de “Os 3”) como uma prostituta das ruas e da internet responsável por acalentar os hormônios de Fonsinho. Além delas, está a já citada Leila.

Após tantas intrigas e insatisfações em cena com condições dos homens em terno sofrimento e solidão, – soma-se lições vagas de importâncias do convívio a dois – o cineasta põe em relevo questões imutáveis e tradicionais envolvendo o masculino e o feminino, com o papel moderno do dito sexo frágil gozando de independência. Os homens já não são os mesmos. Há muito por trás desses diálogos de bar, um solo não explorado pelo realizador, temendo talvez o afastamento de um público arredio a questões mais amplas. Por abrir mão disso e se ater a piadas com quase tudo, “E aí... Comeu?” não faz melhor que tantos outros filmes que saem aos montes anualmente, no entanto abre caminhos.   


sábado, 23 de junho de 2012

Proseando sobre... Sombras da Noite


Tim Burton retoma sua saudosa parceria com Johnny Depp e com sua esposa Helena Bonham Carter numa fantasia de horror, gênero que domina como poucos. O universo tratado se relaciona a vampiros, é livremente baseado na série televisiva de Dan Curtis, com a disposição da genialidade e notável criatividade do cineasta. De teor gótico e princípio fantástico, acompanharemos uma história que abriga gerações, trazendo clichês do terror – entre eles espíritos rondando por corredores e fantasmas com lençóis – a favor de uma trama atemporal. Ainda soma-se a essa brincadeira neste talvez mais infantil filme do ponto de vista dramático de Burton a geração setentista, as músicas da época e aspectos kitschs dentro da contracultura hippie. E olha, Alice Cooper, Yeah!!! Não faltam piadas relacionadas a esse choque cultural. 

Um problema da narrativa é o distanciamento dos personagens. São tantos e são poucos os que despertam interesse ou pelo menos tem tempo para isso, ficando a maioria distanciada, subjugada não só a serem secundários, mas soando desnecessários, o que não desperta qualquer reação do público por suas ações, às vezes negativamente surpreendentes. Já a disposição dos mesmos em cena é brilhante, característica marcada de seu realizador que utiliza da direção de arte para explorar personalidades e salientar figuras unidimensionais. O visual é o expoente do filme, a máxima de Burton, capaz de conceber universos góticos como poucos, usando esse aspecto a favor da narração e dos gêneros e subgêneros que por vezes destoam vislumbrando outras funções na trama. E é tão bom acompanhar isso, nos levando diretamente a obras análogas, sucessos que tornaram o diretor distinto e Cult. Impossível não se recordar de “Os Fantasmas se Divertem”.  

O ponto inicial é ótimo, alucinante e bem explicado, contando um pouco o passado de seu protagonista, Barnabas Collins (Depp), e o que lhe fez dormir por quase 200 anos acordando na década de 70. Seu caso amoroso com Josette (Bella Heathcote) fora sabotado pela bruxa Angelique Bouchard (Eva Green, ótima), o trauma se arrasta por séculos trazendo conseqüências para sua família que já não dota do mesmo prestígio e riqueza. O despertar pós séculos do vampiro vem em clima de horror com comédia, funcionando sobretudo graças aos típicos trejeitos de Depp que compõe uma figura inusitada, cômica e caricata. Seus gestos e gags são heranças de outros de seus personagens com o acréscimo, talvez involuntário, da dicção do Abe Sapien de “Hellboy”, vivido por Doug Jones. E uma vez mencionar Depp e Green, vale ressaltar que a dupla protagoniza uma das cenas de conotação erótica mais enlouquecida e divertida dos últimos tempos. Quanto a Bonham Carter, essa vive uma psiquiatra, Dra. Julia Hoffman, e participa de uma boa cena baseada na função da hipnose e no poder de influência vampiresca.

Nesse filme de grandes pequenas histórias, as resoluções decepcionam, e mesmo o bom elenco não ajuda. Há bons detalhes que indiciam o que está rolando, como exemplo a cena em que a Dra. Julia entra para tomar café e pede que as cortinas sejam fechadas. O final constrange com surpresas tolas e situações embaraçosas. Chloë Grace Moretz que vem em grande ascensão entrega mais uma atuação intrigante. Muito jovem, se mantém num fluxo de bons momentos na telona, entre eles este aqui, caminhando até um desapontamento final minando a complexidade de sua personagem numa revelação apressada e enfadonha. Sua motivação e razão é nula, afinal, a família Collins ainda buscava uma interação íntima. Os resultados então são ínfimos. Sofrendo da mesma maneira está o pequeno Gulliver McGrath com seu David Collins. Michelle Pfeiffer, ainda dotando de imensa beleza, consegue algum tempo de atenção como a anfitriã Elizabeth Collins, descendente do vampiro. Junto a ela, o ótimo Jackie Earle Haley dá dignidade apreensiva com sua feição marcante ao criado Willie. Jonny Lee Miller que encarna o interesseiro Roger Collins fecha a turma dos esquecidos. Há ainda uma boa ponta de Christopher Lee escondido atrás de barba e chapéu.

Com atributos significativos do gênero que tão bem trabalha, Tim Burton presenteia seus fãs com uma película nova sem força, profundidade e interesse comparada a outras obras passadas, dando um pequeno salto após a fraca adaptação de “Alice”, o que representa uma triste comprovação de declínio. Com muito a fazer pelo cinema e com tanta criatividade atualmente mal distribuída, que Burton mostre que os bons momentos desse “Sombras da Noite” possam referenciar um leve despertar do que há de melhor em sua carreira e significar, mas do que qualquer outra coisa, um sinal de retorno aos seus tempos de maravilhas.  


quinta-feira, 21 de junho de 2012

Proseando sobre... Slovenian Girl

Jovens que saem de suas pequenas cidades interioranas atrás de um futuro mais interessante em grandes centros. Esta é uma temática conhecida, incansavelmente usada, trabalhada em distintos contextos na busca de se adequar às situações econômicas e sociais dos países retratados. É sobre uma história desse calibre que Slovenian Girl (Slovenka, 2009) se desenrola, trazendo em seu foco a mudança de vida da jovem Aleksandra (Nina Ivanisin), saindo de Krsko a caminho de Ljubljana, a fim de estudar. Sua estada na capital da Eslovênia lhe rende um parâmetro a respeito de condições, o que a faz emergir num mundo até então desconhecido, porém identificado como saída para suas frustrações. A prostituição é retratada sem o glamour ordinário, mascarando hipóteses de aceitação na trajetória de alguém em busca de si e de felicidade, a qualquer custo, em plena crise econômica européia.

É um ideal de sonho distante ou idealizado, pode-se dizer assim, sobre a busca incessante de Aleksandra por um conforto que outrora não tinha. Provinda de uma vida sem luxos, foca nas possibilidades de sucesso no disfarce de uma prostituta com o codinome “Slovenian Girl”, ocultando o ofício de alguns em sua volta, entre eles Gregor (Uros Furst), um ex-amante, Vesna (Marusa Kink), uma querida amiga da faculdade e seu pai, o batalhador Edo (Peter Musevski). Dividida entre dois mundos e contaminada pelas ofertas de ambos, a garota se restringe numa redenção de seu eu, contrastando a imagem já desfeita socialmente da boa garota interiorana atrás de sucesso.

No sentido da narrativa, o clima proposto por seu diretor Damjan Kozole é de mistério, o que estabelece a dinâmica da obra, sempre ameaçando os segredos de sua fria protagonista. O cadenciamento desse ritmo ganha energia em dois atos em especial, após uma morte de um magnata alemão e quando a protagonista percebe-se atrelada a inescrupulosos cafetões propensos a violência desmedida. A variante da história é a postura de seu diretor em salientar a Eslovênia e sua desconjuntura diante a União Européia, só que tal resultado é difuso e inócuo diante suas claras presunções. 

A escolha de sua protagonista em adentrar-se no ramo da prostituição é uma ousadia proposta na história, e o roteiro escrito pelo próprio diretor juntamente a Matevz Luzar e Ognjen Svilicic permite essa abstração de sua estrela. Com algumas semelhanças a Beleza Adormecida (Sleeping Beauty, 2011), de Julia Leigh, e com o asiático Samaritana (Samaria, 2004), de Ki-duk Kim, - só para citar dois exemplos diante de tantos –, a diferenciação se dá pelo vínculo estabelecido com os clientes, o que rende boas subtramas. Slovenian Girl não foge do sentido usual de longas do gênero: a busca pela independência e sucesso a qualquer custo. Essas mulheres não temem o risco, temem o futuro e se motivam pela insegurança do presente. 

De expressão melancólica demarcada pela fotografia escurecida, a sensação aflita do longa perdura e ganha contribuição marcante de Nina Ivanisin, sem sorrisos, lacônica e com uma voz silenciosa.  Damjan Kozole salienta a deriva progressiva de seu longa tal como é a da protagonista, corrompida, guiada pelo almejo danoso. O diretor prioriza a indefinição de sentido, e, uma vez que o amanhã vem a contribuir com o sofisma da previsibilidade, o rumo incerto é mesmo um risco sofrido por quem o vivencia. Usual e metafórico, Slovenian Girl é um bom filme sobre o caminho à posteridade — não só de alguém, mas de um país. 


sábado, 16 de junho de 2012

Proseando sobre... Prometheus



Ridley Scott, o cara que constituiu obras primas da ficção como “Alien, O Oitavo Passageiro” e “Blade Runner - O Caçador de Andróides” retoma seu melhor estilo com este majestoso – no sentido de produção – “Prometheus”. A história acontece no final do século XXI, após algumas descobertas arqueológicas que poderiam explicar a origem da humanidade. Civilizações antigas deixaram pistas e o espaço parece guardar as respostas. Em outro instante, alguns anos saltam e estamos a bordo da nave Prometheus cortando o universo carregando humanos hibernados. Lá um andróide coordena, David (Michael Fassbender), levando-os até uma missão potencial de solucionar o maior mistério do homem no fictício planeta LV-223.

Nessa excursão espacial, têm início um verdadeiro universo de referências, abrangendo obras clássicas com elegância e compromisso, permitindo os espectadores mais antenados perceberem menções. Estão ali não só uma concordância com a tripulação de Alien, especialmente a Ian Holm, mas os aspectos do clássico de Kubrick, “2001 – Uma odisséia no espaço”, carregando semelhanças a HAL 9000. As cenas que diagnosticam interesses distintos dos tripulantes e o experimento de David já são o bastante para garantir o olhar interessado dos fãs do diretor e de películas do tipo. O que vem depois alcança expectativas, no entanto não se fundamenta a proposta do roteiro, deixando de lado explicações necessárias e até negligenciando personalidades, dada a estirpe de tripulantes, como por exemplo motivações ou crenças. 

Funcionando como um prequel de “Alien”, este projeto tem estigmas para se findar enquanto clássico robusto, ao lado dos outros já citados, porém com menor impacto e valor. A expressão aqui melhora graças a tecnologia, a competência gráfica e artística. O desenho dos cenários são incríveis aliados aos ótimos efeitos visuais: é um planeta a parte, semelhante ao nosso onde um sol brilha. É um lugar que guarda segredos e que dispõe de tecnologia avançada, algo que remete em diálogos críticas a nós, a nossa intenção e cobiça. Afinal, como seres avançados criariam armas de destruição em massa no mesmo solo em que vivem? 

Coeso em forma e conteúdo, embora num segundo ato abandone a fértil reflexão incitada para se converter num calibrado thriller de suspense, “Prometheus” explana o futuro e não dignifica o homem, coloca-o no mesmo lugar atual com iguais curiosidades. O mítico ainda existe, a fé religiosa, embora gasta por algumas verdades concebidas pela narrativa, respira como consolo ou lembrança. Ao tratar da descoberta, especulam quem criou os criadores. A resposta obviamente não é entregue. Segue-se grandes cenas de ação e momentos verdadeiramente tensos. Um, em especial, protagonizado pela ótima atriz sueca Noomi Rapace da trilogia “Millenium”, ficará na memória por muito tempo. 

Com um grande elenco, além de Fassbender e Rapace, tem Charlize Theron, Guy Pearce e Idris Elba somando um outro ponte forte do longa, a encenação. Fassbender se destaca sem dúvidas, com complexidade e intenções duvidosas, não temos acesso a elas, mérito do ator que até quando aparece secundariamente impressiona com dicções. É o cinemão de boa qualidade, o típico blockbuster eficiente por não menosprezar a inteligência de seu público e proporcionar bom entretenimento, ao contrário da maioria. Ele deixa questões suspensas, pode ser intencional, uma vez promover reflexão, propondo que a gente complete ou discuta, mas, pensando no capricho de Ridley Scott, isso é pouco provável. Quem sabe, em eventuais sequências, correções possam ser feitas.   

 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Proseando sobre... Albert Nobbs


Acreditem, há quem diga que atuações não importam muito, que o que vale é a historinha. É uma afirmação para se ignorar. “Albert Nobbs” é uma prova substancial do quanto uma boa encenação faz diferença, o quanto a direção de elenco é importante. Como seria acompanhar uma narrativa sem a atuação? O cinema tem a possibilidade de agregar várias artes de uma maneira a qual nenhuma outra é capaz. Sendo a arte do movimento, o cinema explana valores e sentidos através de quem ou do quê está em cena: nessa obra de grandes interpretações, a veterana atriz Glenn Close se reinventa com saliência e dicção soberba. Neste caso, a narrativa fica em segundo plano ao acompanharmos a sutileza de sua protagonista encarnando um homem.

Em cena uma mentira para a vida, algo que com o tempo tornou-se tão enraizado atingindo no envelhecimento uma perspectiva restrita, o futuro, ao menos o que resta dele. Para aproveitá-lo, as custosas economias de anos abrem algumas possibilidades. E no contexto da trama, para realizar alguns sonhos, a presença de alguém ao lado parece ser importante, e como é interessante notar o desejo pelo outro sem vínculos afetivos, beijos ou afagos, há outro fundamento por trás da cobiça. Assim vive Albert Nobbs (Close), um competente mordomo de hotel, solitário, insensível, sem paixão, dormindo num quarto escuro juntando alguns trocados em baixo de uma madeira destacada no piso. Ali deposita seu futuro, simbolicamente o enterra. 

Passado na Irlanda do Século XIX, o filme é baseado numa história de George Moore e mistura farsa com realidade. A idéia se estrutura na composição de um personagem, Nobss, vivenciado por uma mulher. Ela simplesmente se transforma no mordomo por décadas. O seu passado fica pra trás, sua escolha toma a dianteira pela condição da mulher em comparação ao homem naquela sociedade predominantemente machista. Os valores se sucumbem, tudo muda quando é obrigado a dividir por uma noite o quarto com o Sr. Page que descobre seu íntimo segredo. Tudo ocorre em meio a tantos e bons personagens com caras conhecidas, entre elas está Jonathan Rhys Meyers, estranhamente sem função na narrativa senão enfeitá-la em brevíssimos momentos. Já Aaron Johnson e Mia Wasikowska se destacam como um casal com outros sonhos inatingíveis e subjugados a miséria.
 
Extasiado pela performance de Glenn Close, me pergunto se seu diretor, o colombiano Rodrigo García, não buscou ir além na proposta do filme pelo deslumbramento de seu elenco. Sendo uma história de faces e farsas, essas se corroboram exatamente com o papel do cinema, e assim feito, a obra se estabelece com eficiência como um saudoso exemplar mimetista. É pouco sim no que diz respeito ao universo recriado, bem trabalhado pela direção artística modelando a civilização de Dublin em 1898. Nesse meio com a mulher considerada inferior, meios de saída para elas inflamam enquanto os homens bebem e gozam de sua mítica superioridade. 

Seria injusto também não mencionar Janet McTeer que igualmente Close atua com ímpeto, assumindo um papel com importância vital para as conclusões. E se você não assistiu o filme e queira vê-lo, recomendo que não leia o trecho a seguir: os sonhos padecem junto ao tempo, é saber lidar com o que resta, com o que fica, seja lá o valor que tenha. Cada um atribui diferentemente. Ao final, sobre a cama, resquícios de uma vida não vivida, lembranças que não serão lembradas por ninguém.


sábado, 9 de junho de 2012

Proseando sobre... Madagascar 3: Os Procurados


É provável que “Madagascar 3: Os Procurados” seja o melhor da franquia, um fim momentâneo digno para os simpáticos animais da DreamWorks que ganharam notoriedade surpreendente com o primeiro lançado em 2005. Agraciado sobretudo pelas crianças, a animação que envolve uma série de personagens de um zoológico de Nova York chega a um extremo caloroso, dinâmico e cheio de energia e cores nessa escapada sugerida na Europa, atravessando cidades em fuga num trem carregando animais de circo. Com isso, o contexto e homenagem é justamente a arte circense, cada vez mais esquecida, transposta pelo vigor daqueles animais motivados pela graça do espetáculo e realização do impossível.  

Com um humor tipicamente nonsense desde sua estréia, “Madagascar” explora o exagero sem preocupações com lógica ou coerência. Virtude ou defeito, é discutível, uma vez atingir sua proposta com êxito inquestionável mesmo se atropelando e rendido ao absurdo. Não deixa de ser natural até por sua estilização, sendo provindo da DreamWorks. Os mesmos personagens retornam: Alex (voz de Ben Stiller), Marty (voz de Chris Rock), Melman (voz de David Schwimmer) e Gloria (voz de Jada Pinkett Smith) continuam os mesmos, sustentando a narrativa, porém ofuscados pelos personagens secundários, sobretudo pelos quatro pingüins e pelo Rei Julian (Sacha Baron Cohen) – este último, especialmente nesse terceiro capítulo, se eleva comicamente. Há ainda a introdução de bons novos nomes, destacando-se a jaguar Gia (voz de Jessica Chastain), o tigre Vitaly (voz de Bryan Cranston), o leão marinho Stefano (voz de Martin Short) e a ursa Sonia que vive um romance alucinante. 

A desculpa para o argumento é bem interessante. Eles não tem simplesmente que fugir por serem animais selvagens perdidos pelas ruas de Monte Carlo, mas pela gana pessoal da agente do controle de animais, a Capitã Chantel DuBois (voz de Frances McDormand), uma legítima e letal caçadora que gosta de exibir seus troféus na parede. Lá estão vários animais embalsamados, com uma ausência no centro, um espaço reservado para a cabeça de algum leão. O roteiro de Eric Darnell (que escreveu os dois primeiros filmes) juntamente a Noah Baumbach dão ênfase a vilã fazendo dela implacável. Sua inspiração é enfática e em determinado ato esta chega a cantarolar Édith Piaf para robustecer seus feridos homens.

Produzindo piadas compulsivamente, o que faz alguns personagens perderem a força ou acabarem associados unicamente a alívio cômico – como a zebra Marty –, a obra dirigida pelo trio Eric Darnell, Tom McGrath e Conrad Vernon se sustentam por uma novidade, anteriormente não apresentada devido ao acúmulo de ação: a necessária adequação as atuais condições da vida com uma mensagem sobre tocá-la em frente abandonando o passado. “O Maior espetáculo da terra” lá da década de 50 e até a recente animação francesa “O Mágico” denunciam a decadência desse tipo de arte. Há um lamento tristonho presente aqui sobre tal tema. O adendo de “Madagascar 3” é justamente originado pelo circo, pelas cores, por seu universo: um clima psicodélico então é proposto durante as apresentações embaladas por músicas da moda – o que é um defeito do filme, correndo o risco de datá-lo – misturando com canções próprias, uma adaptação de “Eu Me Remexo Muito” cai bem.   


quarta-feira, 6 de junho de 2012

Proseando sobre... Beleza Adormecida


O universo estabelecido por Julia Leigh é no mínimo atraente. Dito isso, vale acrescentar sobre essa atração inúmeras perspectivas: a filosófica, que reflete o corpo de uma jovem como objeto de prazer; a metáfora, relacionada ao conto de fadas, sobrepondo aquela construção fantástica a realidade infeliz; o sensorial, nitidamente arrastado, contrapondo a vagarosa angústia de viver em circunstâncias despudoradas; a perversão nos atos, algo estabelecido no fetiche de homens com suas manias e sensos; e pela arte, implícita nos manejos fílmicos da roteirista e diretora, exprimindo uma idealização desejosa sobre uma bela jovem nua e frágil entre quatro paredes.

Mais do que assistir e acompanhar a narrativa, parece ser preciso senti-la, por mais custoso que possa ser. Não é difícil se flagrar incomodado em alguns instantes, vários deles cadenciados, mostrando o dia a dia de uma jovem que precisa pagar os estudos. Numa gráfica, sobrevive a um vazio particular, um tempo aturdido e humilhante, e não sendo o bastante tal malogração, seu salário não paga o que deve. É preciso de mais. Sem nada a perder, se interessa por um anúncio no jornal. Aí, talvez, podemos compreender a inserção dela em solo estranho, num lugar em que ela deve servir homens usando lingerie. Mas isso é real.

O filme passa, se delonga e menos informações nos são dadas. A narrativa atravessa um período sumo sobre seu tempo, numa vida em que nada, ou pouquíssima coisa, realmente acontece. O acúmulo de serviços demonstra uma vida rasa, cujo sentido propagado emana solidão. E o que importa nesse meio? O que realmente quer sua protagonista? Não temos esse acesso. Parece não ser o interesse. A vida passa, simplesmente passa e Lucy não vive, é vivida. Acontece que seu trabalho de servir era apenas uma porta de entrada para uma outra e incomum prática: ela precisa ser sedada durante um chá, e durante seu sono, homens passam a noite com ao seu lado. Há uma regra, sem penetração.

A prostituição dessa jovem pequena e delicada é evidenciada através de takes longos em que não só seu corpo é mostrado, mas o cenário inteiro, funcionando como um complemento artístico, como se fosse uma pintura moderna. A direção artística é fecunda ao explorar a palidez de sua estrela naquele contexto. O corpo nu da bela atriz australiana Emily Browning parece remeter a uma idéia de tratar-se de uma jovem ainda não desenvolvida em sua plenitude. É um desespero silencioso, nos adentramos nesse âmbito indolente, com um olhar distante sobre o que acontece entre as quatro paredes de um quarto luxuoso, entre homens ricos e idosos cujos corpos envelhecidos apavoram. E nós fazemos parte, testemunhamos como voyeurs, afinal, estamos em um dos lados do cubo projetado.

Indicado a Palma de Ouro, esta obra pode ser compreendida como retrato moderno, cujos valores deturpados atingem a sociedade e sua individualidade, sua serenidade inerte ao ser, aos outros. Tem boa técnica, a diretora faz uso de elipses como adornos a sua vagarosidade. Aí reside a beleza do filme não acontecido, não concretizado, como atributo significativo ao que a sociedade vigilante é, especialmente quando uma câmera é instalada por Lucy, por curiosidade, para saber o que acontece durante seu sono. Tudo fica em aberto e passível de discussões. É de beleza marcante, porém sem vida, que a primeira incursão de Julia Leigh no cinema transcorre, numa contemplação artisticamente vivaz e de simbolismos atordoantes.