quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Proseando sobre... O Hobbit: A Desolação de Smaug



Mais ágil e vibrante que o anterior, O Hobbit: A Desolação de Smaug é capaz de unir algumas pontas e dar continuidade ao arco dramático dos eventos passados sem prejudicar a história e o ritmo, anexando ainda alguns bons personagens. É inevitável não querer fazer referência a obra prima O Senhor dos Anéis. A presença de alguns personagens – que não constam na obra original – e menções passageiras a outros serve como nostalgia e oportunidade de fazer o espectador gostar mais desta nova saga. No entanto a duração longa, muito embora seja dinâmica e divertida, arrasta-se com planos desnecessários. Há subtramas perfeitamente dispensáveis que nos fazem questionar o rumo da franquia e o interesse maior de Peter Jackson. Aos saudosistas, o filme é uma lástima! Aos que não se importam muito com fidelidade em adaptações o filme é uma deliciosa aventura!

Bilbo segue juntamente aos anões rumo ao Reino Perdido dos Anões de Erebor. São várias as aventuras e embates mortais pelo caminho, semelhante ao longa anterior. Nesse há mais ação, bem mais! O espetáculo visual garante o interesse do espectador e às vezes rouba a atenção da narrativa. O convencionalismo e os clichês seguem incomodando, a tal ajuda que aparece subitamente nas horas inapropriadas tiram a beleza e o suspense iniciado pela sugestão de ameaça e os combates perdem o impacto. Inquestionavelmente infantil, a Desolação de Smaug ganha conotações mais severas com as alterações no roteiro diante a adaptação, imprimindo mais ferocidade – com cabeças rolando e corpos despedaçados sem sangue – a jornada heróica e verdadeiramente perigosa, especialmente quando estão em cena os Orcs e Wargs.

A história ganha traços de obra épica pelos feitos diários de seus personagens, e testemunhamos tudo com convicção em respeito ao que estamos vendo e, principalmente, compreendendo. As cenas de batalhas são bem realizadas e coreografadas. O diretor não perdeu esse cuidado. A técnica o favorece, desde o som ao desenho artístico, tudo responde a favor do longa que mergulha na ação e emerge na tensão, enquanto o humor condensa. Quanto ao drama, esse recai sobre alguns poucos personagens, tendo ligação ao passado e a cobiça que envolve a pedra Arken. O romance não fica de lado e aparece de forma constrangedora, relacionando o anão Kili e a elfa Tauriel. A tentativa de Jackson em plantar uma heroína na história é satisfatória, mas a forma com a qual escolheu lhe ofertar um romance foi absolutamente tola!   

Se o filme tivesse mais 30 minutos, correria o risco de tornar-se aborrecido. Sua exagerada duração é injustificável, a não ser pelo exibicionismo técnico e megalomaníaco de Peter Jackson. Ainda lamento Guillermo del Toro ter pulado fora da direção antes do início das filmagens. O Hobbit: A Desolação de Smaug é um belo filme, sem dúvidas, mas plenamente esquecível e longe de ser um dos mais significativos do ano. E isso é terrível, já que o ano não foi dos mais relevantes. A expectativa com relação ao próximo filme se mantém, ainda mais após o final em aberto que deixou o público atônito e curioso. Ele veio após o melhor momento da obra, a aparição do dragão Smaug. O ótimo ator inglês Benedict Cumberbatch empresta sua voz e movimentos para a concepção da fera. O resultado foi dos mais impressionantes. Que venha o próximo e que seja ainda melhor. E sem embolações, se possível.   


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Proseando sobre... O Lobo atrás da Porta



A estreia do curta-metragista Fernando Coimbra em longas é marcada pela sutileza na condução da trama e na habilidade em sair do drama policial para o suspense de ocasião, ascendendo a medida que fatos são revelados. É notório seu comprometimento em extirpar o romantismo capenga e converter o rumo delgado de produções semelhantes, assumindo uma direção contrária as pretensões brandas. Aqui o desenrolar é outro, choca pela pureza e crueza, não tão distante do que já estamos habituados a ver diariamente em programas sensacionalistas ou jornais, mas distinto graças à inventividade e coragem de não ser politicamente correto e querer agradar todo mundo com a fantasia da segurança.

A história gira em torno de um provável sequestro. A filha do casal (Milhem Cortaz e Fabíula Nascimento) desaparece, abrindo margens para uma rede de indagações a respeito do responsável pelo sumiço. A coordenadora da creche onde a menina foi vista pela última vez diz que a pequena fora embora junto a uma mulher. Pareciam amigáveis. Segundo as descrições, as suspeitas caem sobre Rosa (Leandra Leal), jovem que tem um estreito e estanho envolvimento com o casal. Acompanhamos o desenvolvimento da história através de flashbacks expositivos que possuem eficiente função narrativa, não só para explicar a ocorrência, mas para exprimir o suspense, pondo em dúvida a realidade e consequente salubridade dos discursos.   

Sem querer fazer um estudo de personagem, o roteiro não se atém a alguém especificamente, o que não quer dizer que nossa curiosidade não seja incitada em compreender as verdades por trás de cada ato específico, bem como de quem os realiza. Acompanhamos a investigação e temos total acesso aos depoimentos, e como esses são tirados dos suspeitos, geralmente originados pelo tom irônico do delegado vivido por Juliano Cazarré. Esse é o momento de descontração, o alívio que permite algumas risadas diante o clima hostil envolvente. A personagem de Leandra Leal é a mais complexa, surpreendendo a todo instante com uma doçura branda e segurança perspicaz. Acompanhar suas obscuras decisões é a melhor oferta da obra, já que esta se desenvolve através de pontos de vista. O de Rosa fica reservado para o derradeiro e impressionante desenlace.

Fernando Coimbra traz na bagagem a experiência que os curtas lhe ofereceram através dos anos e detalha um suspense competente com uma técnica que o tempo lhe deu, aperfeiçoada nas produções particulares onde fazia o que queria. Planos sequências se delongam em distintos momentos corroborando com o desempenho dos atores que agem naturalmente. Coimbra tem controle sobre o elenco e sobre o que deseja apresentar ao público, agindo sem receios quanto às prováveis críticas que receberia por ser inclemente. Os diálogos são bons e fortalecem nossa dúvida. O diretor é mais um bom nome que surge em nosso cinema. 

São vários os assuntos tratados no decorrer do filme, entre eles casos extraconjugais e investigação policial, e nenhuma subtrama tem mais atenção do que deve ter. A narrativa segue um curso de esclarecimentos enquanto efervesce com cenas picantes de paixões repentinas, sempre com a interrogação do futuro e dos que os envolve, bem como suas motivações. Temos a real impressão do quão lúgubre são as relações dispostas em cena, isso é condizente a fotografia escurecida deixando a noção de omissões, e aos vários momentos em que grades sobrepõem os personagens, mantendo-os simbolicamente presos, quase que intimamente inacessíveis.  Sonhos se fundamentam na expectativa, a do outro nos é incerta. E nem todas as verdades são fáceis de encarar. E nem todas as atitudes são simples de compreender.

Filme visto no Paulínia Film Festival 2013





terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Proseando sobre... Meu Passado Me Condena: O Filme



Alguém o julgou como desastroso! Algo próximo a aberrações como O Concurso (idem, 2013) e Cilada.com (idem, 2011). Injustiça, esse é melhor. Mas essa consideração não é exatamente positiva. Meu Passado Me Condena: O Filme tem a mesma atribuição, por exemplo, de Crô – O Filme (idem, 2013). O pessoal do marketing nos lembra de que se trata de um filme e não de uma série ou esquete, ou extensão de novela. Seja lá o parâmetro, a realização é pífia, ainda que sua produção seja boa e tenha um bom humorista segurando o filme inteiro. Fábio Porchat garante o ingresso, pois é naturalmente engraçado, embora muitas vezes surja afetado. Seu par, Miá Mello, oferece pouco. Os outros em sua volta são desperdiçados! Elke Maravilha, por exemplo. E ainda há um destaque negativo, o Cabeça, vivido por Rafael Queiroga, como um dos personagens mais odiáveis dos últimos anos. 

Um casal, Miá e Fábio (os protagonistas emprestam seus nomes aos personagens) embarcam em um cruzeiro para viverem uma lua de mel inesquecível. O acontecimento é súbito, não houve muitos planejamentos, já que se conheceram à pouco tempo e movidos pela empolgação de uma paixão cega, casam-se. O plano do roteiro sugere algo mais intenso e íntimo com potencial de ganhar desdobramentos maiores, apoiados no humor. Perderia, talvez, a veia cômica quase que descontrolada tentada e repetida a exaustão. Ganharia narrativamente, já que seu humor independente definitivamente funciona em diversas situações. A coisa se complica pra o filme e para o casal quando coincidências emergem: ambos possuem ligações com um casal milionário (Alejandro Claveaux e Juliana Didone) que está no navio, o que denunciaria seus passados e provavelmente tiraria a doçura de uma potencial e feliz viagem romântica. 

Baseado em uma série de Tv, esse filme dirigido por Julia Rezende se lança ao mar e quase afunda. A narrativa pobre e as situações espalhafatosas fariam sentido em qualquer lugar, exceto no cinema. Todavia encarar a comédia como um filme ingênuo e despretensioso pode fazê-lo ser facilmente digerível. Funcionaria melhor ainda se fosse mais enxuto e a tal viagem de lua de mel fosse bem menor. As ideias são magnânimas diante o exibido e cada dia, reduzido a poucas experiências a bordo, tornam-se insatisfatórios e inconcebíveis. Nesse meio não faltam situações exaustivas jogadas para o espectador como o arroz é jogado sobre noivos. Essa é definitivamente a impressão que dá: tudo é jogado, seja o calor, seja o amor, seja o humor. Tudo é esparramado e Julia Rezende parece não conseguir ordenar.

Noção temporal e espacial não parece ser o forte da diretora. São problemas habituais encontrados em longas similares, aqui com intensidade maior devido ao contexto. O interesse nem é fazer sentido nesse âmbito, mas proporcionar recriação através de um atual astro do humor brasileiro. Além de O Concurso, Porchat esteve em Vai que Dá Certo (idem, 2013). Tanto trabalho no ano, vem colhendo os frutos do sucesso viral de Porta dos Fundos. Vem colocando seu nome nos exemplos vais vis das obras nacionais. O cinema nacional que é gigante e competente, perde espaço para medíocres produções comerciais. Essa crítica vai perdurar por muito tempo. Meu Passado Me Condena: O Filme é frívolo, porém divertido. Quase afunda enquanto um episódio da Tv de um programa ruim. Ainda consegue boiar num mar de mediocridade. 


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Proseando sobre... Um time Show de Bola



Um dos planos-sequência mais memoráveis realizados nos últimos anos está em O Segredo dos Seus Olhos (Secreto de sus ojos, El, 2009), filme do argentino Juan José Campanella. Nele acompanhamos a câmera saltar do alto de um estádio de futebol lotado e adentrar no meio da torcida, encontrando um personagem importante. Uma grande realização, sem dúvidas. E o assunto futebol, tratado e mencionado em alguns momentos naquele intenso drama investigativo é o que parece ter fisgado o diretor nessa animação, Time Show de Bola (Metegol, 2013). E os planos sem cortes também persistem. Agradável e divertido, o longa inova com uma proposta distinta, embora se aproxime inevitavelmente de animações similares como o inesquecível Toy Story (Toy Story, 1995). Em ano de Copa do Mundo, não poderia ser melhor o momento para se lançar tal animação focada no esporte mais popular do mundo.

Na história escrita e roteirizada por Campanella juntamente a outros colaboradores, acessamos uma pequena cidade interiorana onde pouca coisa acontece. A diversão para algumas crianças é um bar que possui uma velha mesa de pebolim. Nela o jovem Amadeo passa suas tardes. Ele é invencível! Em uma oportunidade, ganha de um dos garotos mais metidos do bairro, o que afetará diretamente o futuro: o menino derrotado não aceita derrotas e se torna um individualista e promissor craque de futebol aos olhos de um empresário oportunista. Um vencedor sem escrúpulos que se amargura diariamente por ter perdido por um considerado ninguém numa fatídica noite no passado. O tempo os alcança opondo-os novamente, porém com circunstâncias completamente novas, quase que difíceis de acreditar, ainda que venha de uma animação, de uma genuína fantasia. 

O filme tem o futebol como paixão, mas diz mais do que o furor que o cerca. Fala de ambições e sonhos frustrados, mas motivados pela crença da oportunidade e suas reais – embora flerte muito com o imaginário – possibilidades de conquista. É tradicional na cinematografia de Campanella tratar o passado, exprimir personagens que procuram resolver pendências, especialmente de ordem emocional. A cinematografia recente comprova: em O Filho da Noiva (Hijo de la Novia, El, 2001) há um laço emocional por um desejo não realizado entre dois idosos; já em Clube da Lua (Luna de Avellaneda, 2004) a memória de antigos donos de um clube corre o risco de ser apagada e é defendida por alguns parentes; e no esplêndido O Segredo dos Seus Olhos, amarguras são refletidas através de um caso policial arquivado sem sucesso. 

Muito se discute na história, pouca coisa é substancial, ainda que o alvo sejam as crianças. A graça da trama reside nos pequenos bonecos da mesa de pebolim que ganham vida. Interagem com o protagonista e possuem uma história toda particular. A graça da coisa toda demora para funcionar, fica interessante com a presença dos mini jogadores e tem seu melhor momento num jogo de futebol próximo ao ato final, tempo em que definitivamente rimos muito com gags – a placa publicitária “lanche da Elsa” é impagável – e piadas. De fácil identificação e sem grandes pretensões, Um Time Show de Bola conseguirá agradar o público nacional pelo seu tema. Como que o argumento futebol não funcionaria no Brasil? Oriunda da Argentina, a obra é um sucesso absoluto nas bilheterias hermanas. Tecnicamente é rebuscada, o desenho dos pequenos personagens com suas manchas e arranhões dão um charme todo especial a eles. Quando estão em cena, quase que nos esquecemos de Amadeo e seu dramalhão particular. Talvez seja melhor mesmo deixá-lo em segundo plano.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Proseando sobre... O Tempo e o Vento



O Tempo e o Vento é a obra prima de Érico Veríssimo. Também é uma das mais célebres obras literárias brasileiras. Quando foi anunciada uma adaptação, não faltaram reprovações sobre a possibilidade de transformar tamanha história num filme. Uma série seria insuficiente para se ter ideia da dimensão. Os produtores não se importaram e assumiram a responsabilidade, concebendo um filme que tem lá seus 120 minutos. Pouco, muito pouco. Mas é deveras corajoso! Quem o assumiu foi Jayme Monjardim, o cara que filmou o enfadonho Olga (idem, 2004) e a linda telenovela A Casa das Sete Mulheres, escrita por Letícia Wierzchowski. Wierzchowski, aliás, refaz parceria e roteiriza essa adaptação. O resultado final foi um filme visualmente encantador com uma narrativa apressada, recheada de passagens da obra original, mas precipitadas, encaixadas em míseros minutos diante o que sua magnitude essencialmente clama.

Há tanta beleza nessas passagens fotografadas. Os pampas são exuberantes e a fotografia do competente Affonso Beato dá todo o aspecto do que foram aqueles tempos, com o sol mergulhando no solo, referenciando o tempo que o vento levou embora através de distintas gerações. Assistiremos muitas paisagens em sequenciais planos abertos. Delinear a história de “O Continente”, o primeiro livro da trilogia “O Tempo e o Vento”, é um desafio para qualquer realizador. Algo que talvez não devesse ser feito. No entanto o que o filme de Monjardim proporciona é uma imersão histórica através do atrativo visual, já que a narração se aproxima muito mais de um episódio televisivo do que de cinema. Vale principalmente pela curiosidade daqueles que desconheciam a obra e desejaram definitivamente conhecê-la. Que ao menos funcione como um estímulo para isso.

Temos acesso a história através da personagem Bibiana Terra (Fernanda Montenegro) que narra com ternura ao seu amor, um certo capitão Rodrigo (Thiago Lacerda) representado enquanto figura espiritual, a trajetória de sua família. Teremos acesso a várias gerações, todas envolvidas com a guerra, culminando no romance central de Rodrigo e Bibiana (na fase jovial é vivida por Marjorie Estiano). Tanto sangue fora derramado nos campos esverdeados e tantos romances condenados. Uma das personagens diz que a maldição das mulheres da família Terra é ter que esperar, ciente de que às vezes algumas esperas se eternizarão. Tudo isso aparece sem fundura. Podemos supor que tudo que Bibiana diz são lapsos desconjuntados do passado sem a profundidade merecida. O longa é envolvido por bons artifícios técnicos e artísticos a fim de emplacar a história no gosto popular: a trilha sonora está exaltada e os figurinos caprichados. Fade in/out dão impressão de episódios, planos sequenciais favorecem o teor cinematográfico e elipses exprimem a passagem do tempo, mas surgem expositivas em demasia. A narração é convencional a uma trama novelesca a qual Monjardim parece não conseguir abandonar.
  
Os atores se esforçam, buscam dar importância aos seus papéis. Percebemos que todos são fundamentais e com muito a oferecer, mas não demoram para seus personagens serem descartados, o que causa um inevitável desconforto naqueles que acompanham e se interessam especificamente por um ou outro. O tempo não consta no título arbitrariamente. Ele é fundamental para a história e deve se fazer presente na narrativa como um diferencial. No filme ele surge como poesia, já que falta todo o aprofundamento contextual e de personagens que o livro propõe. Evidentemente comparações entre a obra literária e a cinematográfica são injustas, mas nesse caso tratamos de algo que nasceu para se imortalizar na literatura. O filme passará perdurando somente na lembrança da beleza aquecida harmonizada por romances e guerras febris. Já o livro é um retrato documental de uma das várias histórias do Brasil com todas as graças reunidas para se perpetuar.        

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Proseando sobre... Dark Blood



A carreira de um dos atores mais promissores dos anos 80 chegou ao fim precocemente. Em 1993, prestes a ter as filmagens terminadas, Dark Blood teve de ser paralisado e assim ficou por quase 20 anos. River Phoenix, estrela do projeto, falecera 3 semanas antes do fim das filmagens. Em 2012, com a saúde debilitada, o diretor George Sluizer decidiu terminar a obra, libertá-la, ainda que inacabada. Para lançá-la, decidiu completá-la fazendo uma narração das coisas relevantes que aconteceriam. A imagem em alguns momentos fora congelada e a voz em off de Sluizer dizia aspectos do roteiro, concluindo enfim o filme com coesão num tom melancólico. Certamente não ficou como outrora desejaram, a estrutura fora duramente comprometida pelas lacunas e pelo roteiro que já não era dos mais conformes. Mas vê-la finalizada com o esforço de seu idealizador lhe dá uma expressividade homogênea. O último trabalho de Phoenix fora exibido com significativa dignidade.

No deserto do Arizona, numa região esquecida onde testes nucleares eram feitos, alguns poucos residentes levam uma vida sem ambições. No local reside ‘o menino’ (Phoenix) morando junto com um cachorro numa cabana com restos de tralhas abandonadas originadas dos testes realizados pelo governo. Pedaços de mísseis ficam pendurados em volta como um adorno maldito. A solidão dita o ritmo e o clima releva a sensação de abandono. Há algumas histórias que cravam sua rejeição ao homem branco que não deixou saudade por ali, especialmente relacionadas a sua ex mulher que faleceu em decorrência de um câncer causado pela radiação. O título Dark Blood vem daí representando os nativos americanos lidando contra a invasão. Uma das características mais notáveis do projeto é a fotografia, o sol reprimido no escaldante solo. O espaço inteiro desocupado e morto, como um cemitério do tempo. 

A história traz um casal de atores, Harry (Jonathan Pryce) e Buffy (Judy Davis), que está em lua de mel passeando pelo deserto quando, subitamente, o Bentley que dirigiam quebra. Uma gambiarra foi feita por um mecânico e o carro consegue rodar mais alguns quilômetros até parar de uma vez, dessa vez longe de qualquer resquício de civilização. E numa estrada a qual, aparentemente, poucos carros circulavam. Há uma crítica bastante sutil quanto ao carro como representante metafórico do avanço de tecnologia, com alguns personagens tradicionalistas queixosos em relação ao avanço da ciência de modo geral. É compreensível, foram vítimas dela naquele contexto. Os moradores locais gozam do carro importado dos atores por ser frágil diante os fabricados nos Estados Unidos. 

Parados e ilhados, Harry e Buffy brigam. No cair da noite a mulher observa uma luz distante e decide ir sozinha atrás de ajuda. Ela encontra o garoto e a história penetra numa ótica misteriosa e dúbia quanto ao papel do personagem de Phoenix que manterá o casal sob custódia, promovendo um jogo estranho, envolvendo sedução e tortura. Phoenix é bastante hábil ao dar dualidade nos gestos do garoto sem nome, deixando a cargo do espectador identificar alguns padrões e as funções representadas dentro daquele pequeno núcleo. Buffy representa para ele tanto uma mãe quanto uma esposa, mas nenhuma o satisfaz. Há intrigas inevitáveis que percorrem os desejos dos personagens sob a luz do sexo. Transfigura-se num drama sexual de conotações eróticas sacrificado por cenas que não foram filmadas. A relação se estreita, uma atriz que já fora ícone de beleza tendo posado nua para uma revista vê que não desperta a mesma ânsia de antes. O garoto, interessado, lhe dá a consideração que ela já não gozava mais. 

Não se trata de um filme de gênero, mas de representações, equivalendo as duas versões dos filmes O Silêncio do Lago (Spoorloos, 1988) e (Vanishing, The, 1993), ambos dirigidos por Sluizer. A tendência é majoritariamente a saída do meio, dissonante ao popular, especialmente com um grande ator em ascensão envolvido transitando em distintos gêneros. Se Dark Blood tivesse sido lançado no anos 90 provavelmente não seria revigorante, é menor que os dois filmes anteriores mencionados. Hoje funciona perfeitamente como um tributo a sua estrela. 

Antes da sessão, o diretor presente fez uma metáfora comparando uma cadeira ao seu filme, dizendo que precisava colocar um pé na cadeira que, segundo o próprio, possuía apenas duas, e assim não conseguiria parar em pé sozinha. Seu objetivo era dar algum sentido a obra, ciente de seus problemas e do quanto às filmagens não feitas prejudicou o resultado final. A cadeira parou.