segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Proseando sobre... O Tempo e o Vento



O Tempo e o Vento é a obra prima de Érico Veríssimo. Também é uma das mais célebres obras literárias brasileiras. Quando foi anunciada uma adaptação, não faltaram reprovações sobre a possibilidade de transformar tamanha história num filme. Uma série seria insuficiente para se ter ideia da dimensão. Os produtores não se importaram e assumiram a responsabilidade, concebendo um filme que tem lá seus 120 minutos. Pouco, muito pouco. Mas é deveras corajoso! Quem o assumiu foi Jayme Monjardim, o cara que filmou o enfadonho Olga (idem, 2004) e a linda telenovela A Casa das Sete Mulheres, escrita por Letícia Wierzchowski. Wierzchowski, aliás, refaz parceria e roteiriza essa adaptação. O resultado final foi um filme visualmente encantador com uma narrativa apressada, recheada de passagens da obra original, mas precipitadas, encaixadas em míseros minutos diante o que sua magnitude essencialmente clama.

Há tanta beleza nessas passagens fotografadas. Os pampas são exuberantes e a fotografia do competente Affonso Beato dá todo o aspecto do que foram aqueles tempos, com o sol mergulhando no solo, referenciando o tempo que o vento levou embora através de distintas gerações. Assistiremos muitas paisagens em sequenciais planos abertos. Delinear a história de “O Continente”, o primeiro livro da trilogia “O Tempo e o Vento”, é um desafio para qualquer realizador. Algo que talvez não devesse ser feito. No entanto o que o filme de Monjardim proporciona é uma imersão histórica através do atrativo visual, já que a narração se aproxima muito mais de um episódio televisivo do que de cinema. Vale principalmente pela curiosidade daqueles que desconheciam a obra e desejaram definitivamente conhecê-la. Que ao menos funcione como um estímulo para isso.

Temos acesso a história através da personagem Bibiana Terra (Fernanda Montenegro) que narra com ternura ao seu amor, um certo capitão Rodrigo (Thiago Lacerda) representado enquanto figura espiritual, a trajetória de sua família. Teremos acesso a várias gerações, todas envolvidas com a guerra, culminando no romance central de Rodrigo e Bibiana (na fase jovial é vivida por Marjorie Estiano). Tanto sangue fora derramado nos campos esverdeados e tantos romances condenados. Uma das personagens diz que a maldição das mulheres da família Terra é ter que esperar, ciente de que às vezes algumas esperas se eternizarão. Tudo isso aparece sem fundura. Podemos supor que tudo que Bibiana diz são lapsos desconjuntados do passado sem a profundidade merecida. O longa é envolvido por bons artifícios técnicos e artísticos a fim de emplacar a história no gosto popular: a trilha sonora está exaltada e os figurinos caprichados. Fade in/out dão impressão de episódios, planos sequenciais favorecem o teor cinematográfico e elipses exprimem a passagem do tempo, mas surgem expositivas em demasia. A narração é convencional a uma trama novelesca a qual Monjardim parece não conseguir abandonar.
  
Os atores se esforçam, buscam dar importância aos seus papéis. Percebemos que todos são fundamentais e com muito a oferecer, mas não demoram para seus personagens serem descartados, o que causa um inevitável desconforto naqueles que acompanham e se interessam especificamente por um ou outro. O tempo não consta no título arbitrariamente. Ele é fundamental para a história e deve se fazer presente na narrativa como um diferencial. No filme ele surge como poesia, já que falta todo o aprofundamento contextual e de personagens que o livro propõe. Evidentemente comparações entre a obra literária e a cinematográfica são injustas, mas nesse caso tratamos de algo que nasceu para se imortalizar na literatura. O filme passará perdurando somente na lembrança da beleza aquecida harmonizada por romances e guerras febris. Já o livro é um retrato documental de uma das várias histórias do Brasil com todas as graças reunidas para se perpetuar.        

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Proseando sobre... Dark Blood



A carreira de um dos atores mais promissores dos anos 80 chegou ao fim precocemente. Em 1993, prestes a ter as filmagens terminadas, Dark Blood teve de ser paralisado e assim ficou por quase 20 anos. River Phoenix, estrela do projeto, falecera 3 semanas antes do fim das filmagens. Em 2012, com a saúde debilitada, o diretor George Sluizer decidiu terminar a obra, libertá-la, ainda que inacabada. Para lançá-la, decidiu completá-la fazendo uma narração das coisas relevantes que aconteceriam. A imagem em alguns momentos fora congelada e a voz em off de Sluizer dizia aspectos do roteiro, concluindo enfim o filme com coesão num tom melancólico. Certamente não ficou como outrora desejaram, a estrutura fora duramente comprometida pelas lacunas e pelo roteiro que já não era dos mais conformes. Mas vê-la finalizada com o esforço de seu idealizador lhe dá uma expressividade homogênea. O último trabalho de Phoenix fora exibido com significativa dignidade.

No deserto do Arizona, numa região esquecida onde testes nucleares eram feitos, alguns poucos residentes levam uma vida sem ambições. No local reside ‘o menino’ (Phoenix) morando junto com um cachorro numa cabana com restos de tralhas abandonadas originadas dos testes realizados pelo governo. Pedaços de mísseis ficam pendurados em volta como um adorno maldito. A solidão dita o ritmo e o clima releva a sensação de abandono. Há algumas histórias que cravam sua rejeição ao homem branco que não deixou saudade por ali, especialmente relacionadas a sua ex mulher que faleceu em decorrência de um câncer causado pela radiação. O título Dark Blood vem daí representando os nativos americanos lidando contra a invasão. Uma das características mais notáveis do projeto é a fotografia, o sol reprimido no escaldante solo. O espaço inteiro desocupado e morto, como um cemitério do tempo. 

A história traz um casal de atores, Harry (Jonathan Pryce) e Buffy (Judy Davis), que está em lua de mel passeando pelo deserto quando, subitamente, o Bentley que dirigiam quebra. Uma gambiarra foi feita por um mecânico e o carro consegue rodar mais alguns quilômetros até parar de uma vez, dessa vez longe de qualquer resquício de civilização. E numa estrada a qual, aparentemente, poucos carros circulavam. Há uma crítica bastante sutil quanto ao carro como representante metafórico do avanço de tecnologia, com alguns personagens tradicionalistas queixosos em relação ao avanço da ciência de modo geral. É compreensível, foram vítimas dela naquele contexto. Os moradores locais gozam do carro importado dos atores por ser frágil diante os fabricados nos Estados Unidos. 

Parados e ilhados, Harry e Buffy brigam. No cair da noite a mulher observa uma luz distante e decide ir sozinha atrás de ajuda. Ela encontra o garoto e a história penetra numa ótica misteriosa e dúbia quanto ao papel do personagem de Phoenix que manterá o casal sob custódia, promovendo um jogo estranho, envolvendo sedução e tortura. Phoenix é bastante hábil ao dar dualidade nos gestos do garoto sem nome, deixando a cargo do espectador identificar alguns padrões e as funções representadas dentro daquele pequeno núcleo. Buffy representa para ele tanto uma mãe quanto uma esposa, mas nenhuma o satisfaz. Há intrigas inevitáveis que percorrem os desejos dos personagens sob a luz do sexo. Transfigura-se num drama sexual de conotações eróticas sacrificado por cenas que não foram filmadas. A relação se estreita, uma atriz que já fora ícone de beleza tendo posado nua para uma revista vê que não desperta a mesma ânsia de antes. O garoto, interessado, lhe dá a consideração que ela já não gozava mais. 

Não se trata de um filme de gênero, mas de representações, equivalendo as duas versões dos filmes O Silêncio do Lago (Spoorloos, 1988) e (Vanishing, The, 1993), ambos dirigidos por Sluizer. A tendência é majoritariamente a saída do meio, dissonante ao popular, especialmente com um grande ator em ascensão envolvido transitando em distintos gêneros. Se Dark Blood tivesse sido lançado no anos 90 provavelmente não seria revigorante, é menor que os dois filmes anteriores mencionados. Hoje funciona perfeitamente como um tributo a sua estrela. 

Antes da sessão, o diretor presente fez uma metáfora comparando uma cadeira ao seu filme, dizendo que precisava colocar um pé na cadeira que, segundo o próprio, possuía apenas duas, e assim não conseguiria parar em pé sozinha. Seu objetivo era dar algum sentido a obra, ciente de seus problemas e do quanto às filmagens não feitas prejudicou o resultado final. A cadeira parou.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Proseando sobre... Ilo Ilo


Vencedor do Caméra d'Or no Festival de Cannes em 2013, Ilo Ilo (idem, 2013) vem estreando com alguma força em festivais pelo mundo, caso da 37ª Mostra em São Paulo. O filme também é o representante de Singapura para o Oscar 2014. Boas perspectivas? A história é das mais simples e cativantes: uma criança cheia de comportamentos extravagantes se relaciona com uma desconhecida e juntos, após desentendimentos e discussões, formam uma singela amizade. Ei, todos já vimos algo parecido antes. Não importa, essa é a aposta do diretor estreante Anthony Chen. É a fórmula convencional que deu certo em Cannes, premiado mais pelo carisma do que pelo conteúdo. Nem tecnicamente é tão atrativo! Ainda que limitada, é uma história minimamente interessante de se acompanhar.

Passado no final dos anos 90 durante a crise asiática, o roteiro procura explorar âmbitos diferentes como subtramas durante o desenvolvimento do drama de uma empregada doméstica que precisou deixar seu país para trabalhar entre desconhecidos. A filipina Teresa (Angeli Bayani) leva toda sua cultura para dentro da casa da família Leng. Algumas boas cenas, como aquela em que reza antes da refeição, demonstra um pouco da diferença que inevitavelmente se chocará com todos em sua volta ao longo da projeção, especialmente quando aos poucos exerce indubitavelmente função materna para o pequeno Jiale, dando a ele toda uma atenção que anteriormente não tinha em casa, especialmente quando sua mãe engravidou do segundo filho. O clichê se exalta e se mantém num fluxo constante, absorvendo paradigmas familiares, crise econômica, desemprego, cultura e educação. 

Instantes de ternura se confundem com outros de ferocidades. Nos surpreendemos em alguns momentos com atos raramente vistos no cinema convencional, o que garante um naturalismo benevolente que faz muito bem ao filme. Caminhando com a câmera e registrando tudo de maneira livre, Anthony Chen não expande os horizontes das pretensões de Ilo Ilo. Ele incita possibilidades, utiliza metáforas, recria uma época não tão distante que ecoa seguramente com a crise mundial. A seu favor está a possibilidade de identificação do público tanto pelas condições contemporâneas quanto pelo relacionamento disposto. A mulher e o menino se dão bem em cena, o filme se dá bem quando centrado neles e enguiça quando se afasta da dupla – o roteiro não dá conta de absorver o infeliz momento histórico com o relacionamento. 

O núcleo de relações poderia ser a melhor oferta do filme, mas decepciona na falta de ousadia narrativa, decepciona por não encontrar a veia da história e se apequenar com soluções e decisões pueris. Tudo o que acompanhamos são histórias de rotina dos 4 personagens, com o menino indisciplinado tendo problemas na escola; Teresa buscando ganhar dinheiro a fim de enviar para a irmã que ficou com seu filho recém nascido; e os pais segurando o máximo para não serem vítimas da crise que está chegando ao país. Há toda uma singeleza em volta da trama abastecida com intimidades. Duas ou três cenas ressaltam o quanto Teresa está inserida no núcleo familiar saindo da margem para o centro. A câmera do diretor acompanha tal desdobramento, culminando em uma cena de um acidente e o resultado dessa quando a mulher banha Jiale. O menino comenta algo sobre seu cabelo, algo que tem correlação com um evento no ato final abrupto.



segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Proseando sobre... Os Suspeitos



Quando assisti Seven - Os Sete Crimes Capitais (Se7en, 1995) pela primeira vez, por volta de 1997 ou 1998, lembro, felizmente, da sensação, embora fosse bastante novo para compreender toda a dimensão do filme. Lembro de ter ficado preso no sofá avaliando o que estava assistindo, percebendo que o clima de tensão proposto por David Fincher me causava profunda tensão. Assisti o filme muitas outras vezes depois e o impacto nunca diminuiu. Poucas vezes numa obra do gênero tal sensação se repetiu. Há meses conferi Incêndios (Incendies, 2010), filmaço de um tal canadense Denis Villeneuve, diretor de um outro bom longa, Polytechnique (idem, 2009). Incêndios trazia uma trama longa e engenhosa, recheada de coincidências que se fundamentava numa experiência obscura deixando o espectador atento a detalhes, mesmo com sua longa duração. Acontece a mesma coisa e talvez com maior vigor nesse Os Suspeitos, filme de estreia de Villeneuve em Hollywood. O diretor mantém todo seu estilo num terreno onde esses costumam se perder. 

Semelhante a seu filme anterior, o indicado ao oscar Incêndios, Villeneuve retrata um desaparecimento. É um mote para o roteiro desenhar diversos caminhos. Não à toa, o filme tem como símbolo um labirinto, esse que irá aparecer em diversos momentos com destaque ao pingente de um indigente e o desenho a lápis num papel. Há uma profunda ligação entre eles que se intercala a diversas pontas da história atando-se num caminho rumo a uma única saída, permitindo uma ambigüidade magistral quando se conclui. Até a conclusão, muito foi-se observado através de nossa imersão na atmosfera de suspense tenebrosa fortalecida pela técnica: a fotografia predomina paletas castanhas e a câmera traz os personagens para perto em cômodos pequenos. É claustrofóbico e desesperador! Sensorialmente funciona, já que estamos inseridos juntamente num contexto de constante perigo que o desaparecimento de duas crianças oferece com os pais pouco tendo o que fazer. A chuva seguida pelo gelo, as sombras, os vultos e a frieza que o tempo concede são artifícios calculados que condizem a proposta da trama e soma a interpretação de um elenco primoroso.

Tem-se o policial empenhado, o detetive Loki (Jake Gyllenhaal), frente a um pai desesperado, Keller Dover (Hugh Jackman), e ambos se opõem não por suspeitas, mas por perspectivas. A construção dos personagens é algo feito com especial cuidado pelo roteiro de Aaron Guzikowski. A diligência de Loki, personagem solitário e dedicado, cheio de memórias atormentadas de seu passado – mencionadas em detalhes breves – corroboradas por um tique de piscar nervosamente lhe dá uma dinâmica de inquietação; enquanto Keller vive um dilema moral, fazendo justiça conforme acredita, sem medir custo ou conseqüência de suas escolhas, ainda sendo um personagem árduo e agressivo. Jackman consegue lhe dar perfeito brio. Secundariamente e não menos importante está Alex Jones (Paul Dano em mais um grande momento) como principal suspeito do desaparecimento, um jovem cuja idade mental é compatível ao de um menino de 10 anos incapaz de realizar um sequestro sem que ninguém perceba.  

Envolvente, a trama nunca deixa claro o que aconteceu e pende para reviravoltas, assumindo o risco de nos fazer dispersar pela confusão estabelecida durante a longa projeção. Não nos dispersamos, o roteiro transita por uma progressiva e contínua cadeia de informações, esclarecendo pouco a pouco os fatos relativos ao desaparecimento das duas crianças. Centra-se em Alex Jones, mergulhamos em possíveis motivações, entre elas oriundas de ordem religiosa, da recusa da crença. Personagens até então deslocados vão ganhando mais atenção e um emaranhado de desalinhos narrativos se acentuam deixando o espectador com uma interrogação em mente, certificando se não deixou passar nenhum detalhe. Reforço o desempenho dos atores, já que a empatia garante nosso interesse. Melissa Leo está especialmente grandiosa ao lado de Viola Davis, Maria Bello e Terrence Howard. Esse último devia uma grande atuação desde Ritmo de um Sonho (Hustle & Flow, 2005). 

Os filmes de detetive andam precários, parte das produções são lançadas diretamente em DVD devido às limitações. Ver um exemplar sobressair-se bem em todos os quesitos clássicos sem beber de clichês habituais é uma surpresa empolgante, já que assistimos o cinema respirar ofegante com alguma liberdade (sem intervenção de produtores e estúdio). O cinema vive um marasmo criativo, as produções para televisão estão em maior evidência com maior possibilidade – e oportunidade – de criar e investir com ousadia. 

As surpresas do longa residem na dúvida, nos questionamentos que invariavelmente fazemos a medida que o filme avança, perguntando aqui e ali sobre o que de fato aconteceu e quem verdadeiramente consideramos inocentes. O título nacional nem faz jus a história. Prisioneiros, traduzido do título original, diz respeito ao que o filme essencialmente é. Todos os personagens são prisioneiros de seus comportamentos, ações e emoções, lesando a moral e senso em troca de respostas que poderão não vir. Sem maniqueísmo, assistimos atos seqüenciais de hipóteses sem a luz da verdade. Bem narrado e contado, Os Suspeitos é um legítimo suspense, um thriller que manterá o espectador atento do início ao fim. É cinema autoral, Denis Villeneuve deixa sua marca em Hollywood! E que esta seja influência para muitos outros realizadores que certamente virão.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

Proseando sobre... Serra Pelada



Há 30 anos o Brasil conheceu o maior garimpo de ouro que já se teve registro. Depois de muito sangue e suor, o resultado foi a extração de toneladas de ouro e um buraco que ultrapassou 200 metros de profundidade. O Pará abrigou num curto espaço uma população de 80 mil pessoas que saíram de todos os cantos do Brasil em busca de riqueza, deixando famílias e sonhos atrás de uma oportunidade. A história se concentra em dois desses homens, dois amigos, que deixaram São Paulo imaginando que encontrariam sucesso nas terras do norte, sem saber que junto deles outras centenas seguiam pelo mesmo caminho. No meio de tantos conflitos o filme centra na disputa por território, dinheiro e poder, reverberando na ambição de se ter mais a qualquer custo através de homens condenados à avareza infortuna. 

Entre tantas histórias e sonhos depositados naquela terra, acompanhamos os de Juliano (Juliano Cazarré) e Joaquim (Júlio Andrade). O primeiro ganhava a vida em lutas de boxe enquanto o segundo era um professor que não via grandes perspectivas para o futuro, especialmente depois de sua esposa engravidar. A dupla segue junto para o norte do país ambicionando retornar em breve e com os bolsos cheios. Algumas conquistas chegam, até se acumulam e, observando de perto a chance de ganhar mais, ficam mais tempo até serem consumidos pela cobiça e transformados em carrascos. Essa transformação é repentina e previsível, a acompanhamos nas ações e expressões da dupla que se distancia à medida que o dinheiro divide-os. Extremidades são delineadas pelo roteiro. Um se arma como defesa ou ameaça, não importa. Mata. Em seguida diz te gostado de matar.

O diretor Heitor Dhalia sempre flertou com o comportamento humano dento do cinema através de seus protagonistas. Se em Nina (idem, 2004) ele demonstrava profundo interesse em saúde mental, em O Cheiro do Ralo (idem, 2006) flerta com neurose e obsessão. No lindíssimo À Deriva (idem, 2009) trabalhou com a infância e suas descobertas enquanto refletia sobre adicções. Nesse Serra Pelada explana a grandeza humana e seu delírio frente a riqueza. Seus personagens principais parecem carecidos de morais e regras, são alimentados pela presumível conquista de algum degrau hierárquico no meio da extração. A liderança é passada de mão em mão, com alguns bons personagens bem caracterizados, embora caricatos: o coronel Carvalho (Matheus Nachtergaele) é perverso e torpe; já o Lindo Rico (Wagner Moura, ótimo em cena) se serve de um humor ácido para compor, como uma versão do coringa. 

Nesse filme cujo um momento da história do Brasil serve como plano de fundo para retratar conflitos, algumas cenas são esplendidas: um plano abre mostrando a dimensão local das minas, revelando um autêntico formigueiro humano com milhares trabalhando juntos em conformidade. A fotografia escurecida colocando as minas a frente do homem lembra a realizada em Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007). Assistimos uma combinação de cenas fictícias com imagens de arquivos, servindo como apelo documental do início dos anos 80. Isso é algo que motivou Wagner Moura, um dos produtores, a conceber o filme após leituras e vídeos, fazendo-o recordar das matérias que lera na época. A narração em off compara um conglomerado conjunto de homens modelando as pirâmides do Egito tal como acontece em serra pelada estando a pirâmide invertida. 

No meio da corrida pelo ouro, ainda surge tempo para um romance manar como alusão a cobiça dos pretendentes por riqueza. Aparece a ex prostituta Tereza vivida por Sophie Charlotte em seu papel de estréia nas telonas. A morena empresta toda uma graça e luxúria a personagem, tanto em cenas de sexo quanto nas que lhe exige sensualidade no meio dos milhares de homens que desenterram o que julgam ser o futuro. Ela aparece como troféu e é tratada com violência. Os atores de modo geral estão bem. Dhalia sempre prezou isso. Juliano Cazarré segura o filme com sua agressividade latente enquanto Júlio Andrade dá um teor mais crítico e ponderador a Joaquim, sempre recordando da família, de sua mulher (Laura Neiva em sua segunda parceria com o diretor), incerto se sua escolha realmente tenha valido a pena.

Um barranco desaba matando dois homens. Após o acidente a amizade entre os amigos entra definitivamente em conflito, desmoronando, enterrando os valores que a cobiça abateu. O tempo se delonga de 1980 a 1984, ostentando tudo o que se fez no local, incluindo uma cidadezinha onde tudo era liberado. Compreendemos bem essa passagem do tempo a partir de algumas escolhas do diretor. O roteiro favorece a compreensão, é simplório e pouco inventivo, mas coeso diante o que pretende mostrar. O problema se dá na narração em off, a história é contada por Joaquim. Há um potencial muito grande desperdiçado quando tal narração conta toda a série de eventos da época. Facilita a compreensão, mas diminui o filme. A década de 80 é remontada sem muito esforço, as aspirações dos viajantes atrás de dinheiro é bem narrada, e toda a fortuna apoderada não parece ser o bastante. Nem tudo que reluz é ouro. As conseqüências podem ser mortais.