quarta-feira, 9 de abril de 2014

Proseando sobre... Noé


 Um dos mais populares mitos bíblicos ganhou uma versão para o cinema. O responsável pelo feito foi Darren Aronofsky, diretor de tantas grandes obras como Pi, Réquiem para um Sonho e Cisne Negro. Muitos questionaram a escolha do diretor, pensavam quais eram suas intenções por trás de tal adaptação potencialmente polêmica. Declaradamente ateu, Aronofsky transformou a história numa grande metáfora ambiental como razão pelas quais o Criador provocou um genocídio colossal impiedosamente. É bem filmado, realizado, detém uma estrutura linear objetiva e lança apontamentos do retrato narrativo com a contemporaneidade, encontrando similaridades caóticas com relação ao que o homem vem aprontando com a natureza.

É um épico bíblico megalômano, com toda a perfumaria e atrativos visuais de grandes produções recentes. Não está tão distante de alguns clássicos baseados em outros mitos bíblicos como Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille, esse lá dos anos 50. O fato é que esse gênero, se é que possamos chamar assim, foi resgatado de uma maneira ousada, mas não surpreendente dado seus envolvidos. Também é fato que a história fora castrada, seria ainda mais ousada e certamente polêmica. Uma cena de sexo quase pintou em cena, infelizmente economizada, ou melhor, posta como sugestão para os não reprimidos. Mas está ali, velada, vivenciada pela surpreendente Emma Watson.

Quem vive Noé é o talentoso Russell Crowe que há algum tempo não emplaca uma grande atuação em um grande filme. Crowe imprime uma violência aterradora ao protagonista, munindo-o de ambição diante a ordem que recebera das alturas. Seu propósito se converte em obsessão. Obsessões são comuns na filmografia do diretor. Percebemos logo no início do filme a relação desse personagem com a natureza, com os animais e plantas, respeito herdado do pai assassinado. Essa preocupação do roteiro em explorar o âmbito ambiental é certeiro, mas está estranhamente disposto em cena: alguns atos são cafonas e pedantes, sacrificados pelo didatismo. No elenco também estão Jennifer Connelly que volta a trabalhar com o diretor; e Anthony Hopkins como Matusalém que mais parece o Mestre dos Magos.  

Boas e agitadas cenas temperam o filme de uma maneira possível de agradar distintos públicos, pois se configura num ilustre longa de ação dos mais agitados, com direito a monstros de pedra e pancadaria. É um autêntico filme-catástrofe. A existência de um vilão personificado impõe alternativas de embates quando, numa percepção mais profunda a cerca da proposta da história exibida, o  antagonista é o próprio Criador. Tecnicamente competente, os efeitos visuais empolgam, uma de suas melhores cenas é puramente digital quando faz referência ao evolucionismo, atravessamos num único plano anos com animais numa vereda seguindo em frente para um futuro incerto, embora ensolarado.

Insistindo no âmbito de relações onde um indivíduo é desafiado por circunstâncias – tal como o matemático em Pi, a bailarina em Cisne Negro, os dependentes em Réquiem para um Sonho e o combatente em O Lutador –, Darren Aronofsky dá sua interpretação e estabelece uma conflagração. A violência explode em cena de maneira natural. É inevitável, a Bíblia não nega a crueldade em várias de suas passagens. Nem vale fazer uma designação religiosa em cima do que o filme propõe, a arte é superior aos dogmas. Algumas críticas recaem sobre a autenticidade com relação ao original. Noé tem a função de entreter e questionar o ser humano, não a fé, portanto, os demasiados crédulos precisam entender que o filme não precisa – deve - ser absolutamente fiel as escrituras. Adaptações são assim. Obras similares a Biblia como O Senhor dos Anéis e O Hobbit também não foram.  


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Proseando sobre... Jovem e Bela

François Ozon vem retratar a juventude num filme de descobertas sexuais, de experiências, do reconhecimento do prazer. A forma com a qual narra difere do que geralmente vemos em obras análogas por imprimir um realismo e naturalismo nas relações dispostas, com a protagonista se prostituindo, saindo com homens mais velhos. Ela faz por prazer, pela oportunidade de enfrentar o desconhecido, como num jogo – assim ela explica em determinado momento. Implica-se nessa dinâmica questões sociais, psicológicas e filosóficas relativas ao seu desejo e recompensa, já que em uma transa ganha 300 euros e guarda o dinheiro numa carteira para ser usado no futuro carente de objetivo. O que ela faz é errado? Ozon nos mostra as circunstâncias sem responder, encarregando o público de testemunhar e julgar como este achar conveniente.

A trama se inicia no calor do verão numa casa de veraneio quando a jovem e bela Isabelle (Marine Vacth) toma sol fazendo topless. Nada de errado. Seu irmão a contempla – e nós juntamente através de um binóculo. Ele é um adolescente percebendo o crescimento da irmã, interessado pela beleza da figura feminina que vem lhe despertando interesse na escola. Há quem possa contemplar a cena como uma incitação incestuosa. Bobagem, essa não passa de um vislumbre curioso com relação a corpos em formação. Julgar a sexualidade alheia desencadeia uma entonação repressora a qual o filme se mantém distate. Nesse verão estilizado no litoral, a garota conhece um rapaz e com ele perde a virgindade. Uma contingência passageira. A relação desencadeia renovados desejos e novos ciclos inauguram distintas fases e interesses.

O diretor salienta os olhares e o distanciamento. Quando as férias terminam, vemos Isabelle indo embora observando seu primeiro amante ficando para trás. Tal plano constata toda uma profundidade de núcleos de relacionamentos desfeitos por conjunturas. Nada será a mesma coisa. Elas podem melhorar! E chegam novas estações, o filme é acompanhado por elas como episódios da vida da protagonista que de perto acompanhamos. Ozon é ótimo em evidenciar sua estrela sempre frente a câmera, explanando sua beleza em vários atos, seja quando está de biquíni na praia – numa tomada semelhante a realizada em Swimming Pool - À Beira da Piscina (Swimming Pool, 2003) com Ludivine Sagnier sob o sol –, nas que evidenciam explorações sexuais – masturbações – ou com os clientes, esses que geralmente são muito mais velhos. Essa proposta de explanar a juventude e sua beleza passageira culminará numa cena final excepcional, quando Marine Vacth divide a cama com Charlotte Rampling.

Passando o tempo, alcançamos todas as estações, percebemos as várias experiências de Isabelle, e notamos suas frustrações. Algo sério acontece e sua vida privada chega aos ouvidos da mãe e da polícia. Tudo inevitavelmente muda, exceto o desejo. Canções acompanham a narrativa, as letras trazem um pouco da percepção da protagonista que poderia ecoá-las traduzindo seu cotidiano. São composições de seus sentimentos. A intenção por trás do que conferimos em cena a partir das ações de Isabelle é retratar a sociedade julgando o que está perto, ao passo que aceita quando distante: a filha se prostituir não é legal, mas não há problema em existir prostituição. Tantas outras coisas sem encaixariam perfeitamente nessa ótica.

A série de acontecimentos que perpassam as 4 estações ficam em suspensão na trama graças ao roteiro linear, tudo é episódico e acentuado por algo simbólico, dialogando diretamente com a estação vivenciada. A primavera finda como renascimento, um novo brotamento diante a vivência do passado recente. Coisas demais aconteceram em pouco tempo e isso se arrastará pelo resto da vida, não só de Isabelle como também de sua mãe, irmão e padrasto. Recorrências no cotidiano, experiências precisas e a inclinação para o sexo numa abordagem semelhante ao clássico A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967). O sexo, aqui, também ocorre no período diurno. E esse sexo não vem como necessidade para uma protagonista que precisa dele para a vida, mas por gostar, ou para ocupar o tempo com algo que lhe dê estímulo, uma pulsão de vida que lhe desperte interesse e funcione como compensação da apatia contemporânea. 


terça-feira, 1 de abril de 2014

Proseando sobre... Alemão



A alçada do humor nacional nos cinemas vem ofuscar boas produções não comercializadas graças ao seu apelo mercadológico. Nós produzimos muitos e assistimos pouco. Pouquíssimo. A culpa é de quem? Quando uma novidade como Alemão surge nos cinemas sem concentrar-se exclusivamente em grandes centros, chama a atenção. Mas chama a atenção pelo aspecto que não deveria chamar. Observamos: olha, não é mais uma comédia nacional. Mas é um filme de ação que vem da onda Tropa de Elite e Assalto ao Banco Central. Há outra questão mercadológica aí que funciona bem. Bom para os produtores, relativamente bom para o cinema quando a preocupação não é unicamente ganhar muito dinheiro. É o mal das grandes produções! Não é o caso deste aqui, felizmente.

Assistiremos a ocupação do complexo do Alemão em cenas de arquivo misturadas a outras fictícias trazendo a história de 5 policiais infiltrados que ficaram presos por lá dias antes da pacificação e instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras). Quando os policiais Branco (Milhem Cortaz), Samuel (Caio Blat), Danilo (Gabriel Braga Nunes), Carlinhos (Marcelo Melo Jr.) e Doca (Otávio Müller) tem suas identidades reveladas, todos os traficantes do morro passam a buscá-los em todos os cantos. Graças ao feito, ambos se reúnem secretamente numa pizzaria e aguardam reforços enquanto se desentendem, se desconfiam e se ameaçam, enclausurados sob a expectação da morte enquanto a ajuda não vem. Aí reside um dos maiores problemas do filme: percebemos os policiais, no entanto não o compreendemos como deveríamos. Falta de trato do roteiro apressado.

Várias questões se desenrolam, discussões sobressaem levantando distintos aspectos sociais e do ser humano oprimido. O choque de ideologias é visto através dos sequenciais conflitos. O desenvolvimento disso é bem feito pelo diretor José Eduardo Belmonte, no entanto percebemos que ao final parece falho, ou insuficiente. A razão é clara: a profundidade de seus personagens é nula, o que nos mantém atentos e atônitos são os ótimos atores, especialmente Blat e Milhem Cortaz que travam um caloroso duelo. Vale ressaltar que quase toda a história se passa num único local, uma espécie de porão. A noção espacial de Belmonte corrobora a técnica competente da produção, basicamente alinhada muito mais ao juízo de valor do seu tema do que a qualquer apontamento de heroísmo, muito embora existam lapsos desse paradigma homérico. 

Cauã Reymond assume o antagonismo e também é um dos produtores. Ele já havia trabalhado com Belmonte no ótimo Se nada mais der certo. Antônio Fagundes dá uma dinâmica diferente ao Delegado Valadares, vitimado, cansado, esgotado. Há quem possa condenar o sentido dramático de sua presença cada vez maior no decorrer da obra. É um traço inevitável desejoso em promover empatia, certamente nos aproximamos dos personagens graças a isso, todavia há um distanciamento da câmera que apenas percebe: esse afastamento é proposital, não só para compreender a dinâmica em volta do medo, mas também para não tomar partido e se assumir um longa político. Os interesses por trás da ocupação ficam completamente de lado: o atrativo são as relações estabelecidas e os horrores por trás da insegurança.